Entrevista com Felipe Castilho, autor de Serpentário

“Escrever fantasia é fazer frente aos dias absurdos que vivemos”

Felipe Castilho é um dos nomes mais promissores da literatura fantástica brasileira. Com a série Legado Folclórico, estreou e encantou inúmeros jovens por todo o Brasil. Seu quadrinho, Savana de Pedra, lhe rendeu uma indicação ao Prêmio Jabuti. Em 2017, Castilho lançou o primeiro volume de sua série Ordem Vermelha, que passou semanas na
lista de livros mais vendidos do Brasil, ao lado de gigantes da literatura pop como Dan Brown, John Green e Neil Gaiman.

Em seu segundo livro pela editora Intrínseca, lançado dia 18 de agosto de 2019, o autor brasileiro se aventura pelo gênero de terror, com Serpentário. O livro conta a história de quatro jovens, Caroline, Mariane, Hélio e Paulo. Em 1999 os amigos se aventuraram na terrível Ilha das Cobras, local com a segunda maior concentração de serpentes do planeta. Ali, a vida deles muda. Anos depois, agora adultos, os amigos tem de encarar o passado terrível que deixaram para trás.

Apesar do tom macabro de seu novo romance, Felipe é extremamente simpático. O encontrei duas vezes pessoalmente. Na primeira, em uma palestra sobre folclore na UFMG, ele me recebeu com um sorriso e um abraço. Um ano depois, o encontrei no estande da Intrínseca, na CCXP, no lançamento de Filhos da Degradação, a primeira parte da Ordem Vermelha. Fui conversar com ele e, para a minha surpresa, ele me reconheceu. Disse que não sabia meu nome, mas se lembrava do meu rosto. Havíamos conversado por menos de cinco minutos no primeiro encontro.

Esse é um relato comum dos leitores de Castilho nas redes sociais. Entretanto, Felipe afirma que não utiliza as plataformas digitais com a premissa de se promover para seu público. Ele os encara como amigos. O autor acredita que sistematizar a comunicação com seus fãs faria até mesmo sua escrita perder a graça. As redes sociais não são o maior forte do escritor. “Eu não consigo acompanhar tanto quanto eu gostaria, mas eu entendo que preservar minha saúde mental para escrever é importante, por isso não posso ficar o tanto quanto eu desejo.” Apesar disso, ele enxerga o Twitter como uma ferramenta capaz de despertar a empatia. “O Facebook e o Instagram não me permitem me colocar na pele de outro, no Twitter eu comecei a conhecer muito mais sobre espectros de sexualidade e ter empatia com outros grupos. Me sinto saindo um pouco da minha bolha privilegiada.”

Gentilmente o autor aceitou meu convite de entrevista pelo Twitter e conversamos sobre seu interesse por literatura, seu novo livro e como Castilho vê o cenário político cultural brasileiro.

Geeks United: Quando você se interessou pela literatura?

Felipe Castilho: Minha mãe sempre me deu muito livro, ela o transformava em um objeto de desejo, como um brinquedo. Cresci viciado em livros. Quando tinha 16 anos, o Senhor dos Anéis foi publicado aqui e dois anos depois o primeiro filme foi lançado. Isso me motivou a escrever, mas não tinha nenhuma noção de narrativa. Comecei a fazer cursos e oficinas de escrita criativas. Publiquei meu primeiro conto na faixa dos vinte anos. Fiquei muito tempo com narrativas curtas, e aí em 2011, após diversas recusas com um livro que estava escrevendo, aceitei a sugestão de uma editora que gostou do meu tom e me aconselhou a escrever algo infanto-juvenil. Eu emulava um estilo que não tinha, tentava fazer algo sério demais, trevoso. Abri mão desse livro e escrevi Ouro, Fogo e Megabytes, meu primeiro romance publicado. É um livro bem mais leve e divertido e foi aí que encontrei minha voz, ao menos pra começar.

GU: Além da sua família, alguém mais te inspirou?

FC: Eu amo Mário Prata. A primeira coisa que eu li dele foi um presente que eu comprei pra minha mãe, o “Schifaizfavoire: Dicionário de Português”. Comecei a dar muita risada com aquilo. Eu era muito pequeno e ia em livrarias procurar livros que tivessem o mesmo estilo. Descobri assim Douglas Adams. E fiquei maravilhado, o Douglas Adams era como o Mário Prata da ficção científica. Eles me inspiram demais. Tem o André Vianco aqui no Brasil. Ele leu as minhas coisas quando eu ainda estava engatinhando na literatura. Na época ele me abriu bastante os olhos. A inspiração vem de todo canto. E quadrinhos né. Desde pivete, lendo bastante Vertigo, Marvel, DC. Principalmente Neil Gaiman e Alan Moore.

GU: É a primeira vez que você escreve terror?

FC: Não. Já escrevi muita narrativa curta, muito conto, novela. Mas é a primeira vez que eu publico. Apesar de sempre haver um elemento ou outro de terror nas minhas obras. O Legado Folclórico. mesmo sendo juvenil, sempre tinha algumas partes macabras. O segundo e o terceiro livro tem elementos de terror;. Só que eu não podia extrapolar, escrever um terror mais pesado do que a faixa etária do livro pede. A Ordem Vermelha segue nessa linha mas ainda assim não é um livro essencialmente de terror. No Serpentário eu pude extrapolar. Faz tanto tempo que eu não escrevo nada que não seja uma série, uma saga, que escrever um livro único me pareceu bom, pra eu mostrar essa outra faceta. Ainda assim, não deixa de ser um livro de fantasia, mas eu pude brincar bem com elementos do
terror, inclusive com o terror psicológico, que é uma coisa que me atrai muito. Então foi a primeira vez que eu dei as caras nesse sentido.

GU: Qual é o papel do Folclore no Serpentário?

FC: Eu peguei vários recortes de muitos lugares, inclusive, algumas coisas que eu já tinha pensado em usar no Legado Folclórico mas por temer muita informação num livro só, acabaram ficando de fora. Eu tinha uma ideia bem interessante para uma versão da lenda Cobra Honorato, que é uma lenda mais do Norte, e eu pensei em escrever algo que não era ligado ao Legado, mas que eu pudesse aproveitar, pudesse brincar com outros elementos
de terror.

Serpentário é um livro mais pesado, de uma maneira bem diferente do Legado, onde o personagem é um moleque aprendendo sobre o folclore, e as coisas acabam sendo apresentadas de uma maneira bem mais didática. O folclore está bem intercalado no Serpentário. Tem muita coisa daqui do folclore do litoral de São Paulo, tanto do litoral norte quanto do litoral sul. Tem lendas, como a lenda do Padre José Anchieta matando uma cobra gigante no litoral. Dizem que ele cortou a cabeça dela, outras lendas falam que essa cobra se escondeu numa gruta, perto da região de Ilhabela. Como a serpente é algo muito simbólico, tem vários significados, eu pude brincar demais com isso. O folclore tem muita coisa em relação a serpente, e cada personagem de Serpentário tem um trauma diferente. Todos eles tem algo ofídico no eixo do medo deles, então eu pude brincar bem com isso. Não deixa de ser um livro de folclore, apenas acredito que esteja em uma outra roupagem, um pouco mais pesada.

GU: Como se deu a escolha da Ilha das Cobras pro cenário do romance?

FC: Essa é uma armadilha para os leitores na verdade. Quando eu descobri o que é a Ilha da Queimada Grande, que o pessoal chama de Ilha das Cobras, eu fiquei muito fascinado. Existe quase uma brecha na evolução da serpente, lá tem cobras que evoluíram de maneira muito diferente das serpentes do continente. Em uma das vezes que eu estava visitando o litoral Norte, perguntei sobre a vida da região. Quase todo mundo me falava que a Ilha das Cobras ficava lá. Eu já tinha ouvido falar da Ilha da Queimada Grande e que ela era no litoral Sul. E quando eu questionava, cada um me dava uma versão. Alguns me falavam que a ilha ficava ali mesmo.

Alguns falavam não, que a Ilha das Cobras fica no litoral Sul, perto de Peruíbe e Itanhaém. Então eu percebi que tinha uma desinformação muito grande, o que é normal do folclore. É claro que tem a parte científica da Ilha da Queimada Grande ser a ilha onde tem essas cobras especiais. Mas eu uso essa confusão que eu senti pra situar os
personagens na trama. A narrativa se passa em dois tempos, lá em 1999 e depois em 2018. Na parte de 1999, quando eles são adolescentes, eles estão olhando pra uma ilha no litoral Norte e falando, essa é a Ilha das Cobras. O único personagem que é nascido nas praias do litoral, o Paulo, fala que na realidade essa é a Ilha das Couves, não a Ilha das Cobras.

As outras crianças duvidam e eles vão lá ver. As crianças sempre querem se provar. É uma burrice inicial, uma teimosia que move a trama. De fato, a Ilha da Queimada Grande praticamente não aparece no livro, ela é um fator muito importante por conta dessa aura mística, mas eu guardei uma surpresa pros leitores.

GU: Você chegou a visitar o local?

FC: Eu não fui a Ilha das Cobras. Só pode visitar o local acompanhando com um técnico do Instituto Butantã, ou do Exército e da Marinha. A Ilha das Couves, que todo mundo falava que era a Ilha das Cobras, eu fui. Passei em algumas ilhas da região com pescadores. Perguntava o quanto eles cobravam pra me levar pelo litoral. Cada vez que eu visitei eu ia pra alguma ilha diferente. Algumas delas tem cobras também, mas nada naquele número, seis por metro quadrado. Mas toda a história da Ilha da Queimada é muito fascinante. Você pode encontrar diversos materiais, pesquisas, falando sobre a família do antigo faroleiro e isso já gera um folclore, aquele telefone sem fio onde cada um fala alguma coisa. Até teria vontade de ir, talvez vestindo um escafandro de ferro, porque realmente é um local muito pavoroso, mas eu tenho uma curiosidade mórbida de ir lá.

GU: Você citou a Ilha das Cobras como uma brecha na evolução e a sinopse oficial do seu livro utiliza a palavra “Darwinismo”. Qual a relevância da ciência no romance?

FC: Enquanto eu escrevia o romance algo muito engraçado acontecia. Engraçado não né, mais rir pra não chorar. Houve diversas opiniões de pessoas públicas diminuindo a importância da ciência. Estamos ouvindo muitas falácias, como se estudar fosse coisa da esquerda bolivariana brasileira. Isso acabou me motivando bastante, falar sobre o que acontece quando você ignora a riqueza científica de um país. Durante a escrita aconteceu o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Tudo isso me machucou bastante. Isso transparece um pouco na história. Eu não tenho uma formação em ciências exatas ou biológicas, mas acredito que para escrever precisamos ser curiosos e antenados nesse campo, para não falar coisa errada. Minha indignação com o descaso que nossos cientistas estão sofrendo, o sucateamento da ciência nos últimos meses, isso me influenciou na hora de escrever.

GU: Vivemos em um mundo onde ministros do atual governo falam abertamente contra livros de fantasia. Como você vê isso?

FC: É um obscurantismo bem babaca. Seria bobo e infantil se não fosse tão nocivo. Nós passamos tanto tempo tentando construir um país que lê, um país que dê valor a seus artistas e um negócio desses parece que são dez passos para trás. Isso é típico de quem tem costume de ladrar que tudo o que é contrário a eles é ideologia, mas o que eles fazem, que é praticamente pregar queima de livros, isso não é ideologia. É uma coisa quase distópica que nós estamos vivendo, a distopia começa a perder a graça por conta de todas as proibições, perseguições, linchamentos virtuais. Tudo isso é um sintoma bem ridículo, é impossível escrever sem acabar alfinetando uma idiotice dessas. Parece às vezes que são esquetes de humor, falando sobre Elza do Frozen e livros sobre bruxas. Pelo amor de Deus, nós estamos em 2019, as crianças nunca foram tão espertas e inteligentes e nós estamos voltando a queima de livros.

GU: A Ordem Vermelha tem um tom bem político. Você sofreu por conta disso?

FC: Sim. Eu dei entrevistas para vários veículos, de todo o tipo. Antes do livro sair, rolou umas piadas sobre a cor vermelha. Existe essa paranóia. Depois que o romance saiu, teve gente falando que era uma obra nociva, que eu era um depravado. É essa histeria. A própria histeria que eu brinco na história. Todo o universo do livro foi construído em conjunto, com o pessoal da CCXP. Mas como eu sou o escritor, a minha opinião política não some quando escrevo. É um livro com uma sociedade oprimida. E você tem situações na trama que tratam sobre isso. As pessoas enxergam como elas querem, às vezes como se você estivesse tentando doutriná-las. É uma histeria generalizada, típica da galera que tenta ganhar no grito.

GU: Qual a importância de utilizar o folclore nacional em produções brasileiras?

FC: É muito bom a gente ter contato com tudo, produções artísticas e culturas do mundo inteiro. Mas é claro que a gente acaba ficando bem no meio de um canal que é simplesmente só Hollywood. É uma cultura de entretenimento que a gente não pode ignorar. Vivemos bebendo do folclore, da mitologia de outros países, isso é muito rico pra gente, conhecer o mundo e ter uma noção global das coisas. Mas a gente esquece muito do que tem ao redor. Um país tão grande, com tanta riqueza cultural, riquezas naturais, isso acaba sendo esquecido. Consumimos histórias de lugares que não falam tanto com a gente. No Legado Folclórico, eu tentei abraçar nosso mitos e lendas e mostrar nosso país. É possível criar um sentimento de pertencimento às pessoas, aos leitores. Fiz questão de visitar todos os
lugares que estavam presentes nos livros. Fui visitar com o intuito de conhecer as lendas do jeito antigo, do jeito que o folclore é: da boca pro ouvido. Não só pesquisar pela internet, mas ouvir o relato de alguém.

Hoje mais do que nunca, os escritores estão aprendendo a olhar pra dentro. Os livros, a ficção nacional, vai ter uma voz diferente. Falo mais pela área que eu atuo, na literatura fantástica e na ficção científica. Os autores dessa vertente estão mais do que nunca prestando atenção que a gente fala de um jeito que não é como falam nos filmes de Hollywood. Nós temos tramas que dizem mais a respeito de nós como pessoas, com dramas próprios, até pela forma conturbada de como nosso país surgiu. Ele já começou de uma maneira trágica, com os verdadeiros moradores daqui sendo escravizados e massacrados. Até hoje nós não os respeitamos. Ouvimos que o índio é vagabundo e que eles tinham que estar trabalhando. É uma coisa trágica, que com mais de 500 anos de história, de um país que não tem só 500 anos, se esqueçam disso. A ficção, pode abordar o nosso país de uma maneira mais incisiva e é isso que eu tento fazer.

GU: Pra você qual que é a importância da escrita fantástica, da fantasia, nos dias de hoje?

FC: Vários escritores vão responder de uma maneira parecida que nós escrevemos fantasia para fugir da realidade, que ela pode ser uma representação do real através de metáforas. Mas nós vivemos em dias absurdos, que tentam normalizar o absurdo. Escrever fantasia é uma forma de resistência a essa realidade forçada, uma maneira de fazer frente. Parece que tudo o que surge de uma maneira mais popular e espontânea, é colocado debaixo de uma camada de “isso não é sério, isso é lixo”. A literatura de terror já foi totalmente pulp e hoje temos grandes nomes escrevendo, sendo um gênero procurado e apreciado pelos leitores. A literatura fantástica também já foi levada como algo que não é sério, algo infantil, mas tem tanta gente produzindo coisas magníficas, que só podem ser abordadas através do insólito, da fantasia, que eu acabo preferindo ficar nessa parte, até por uma espécie de resistência. O Brasil é um celeiro incrível de autores muito criativos que estão preocupados tanto com a parte imaginativa tanto com a forma da escrita. Gente boa que vai ficar pra história.

Daniel Vila Nova

Fã de literatura, vai de Machado de Assis a Turma da Mônica em uma única sentença. Jogador de RPG, tem todos os consoles da Sony mas jura que não é Sonysta. Adora filmes ruins.