Crítica – Coringa

Propositalmente ambíguo, Coringa entrega origem definitiva do vilão através de crítica vaga ao establishment

Talvez não exista, dentro da mídia de histórias em quadrinho, vilão mais icônico do que o Coringa, arqui-inimigo do Batman. Sua história de origem sempre foi confusa, entretanto, nas últimas décadas, a história retratada na HQ de Alan Moore, Piada Mortal, foi tida como a gênese oficial do personagem. Entretanto, o novo filme de Todd Phillips propõe a melhor história de origem que a personagem poderia ter. Caótico, polêmico e violento, o longa é a síntese perfeita de quem é o Coringa.

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um homem perturbado e sem qualquer perspectiva vivendo na cidade de Gotham. Com o sonho de ser um comediante stand-up, o pobretão pula de bico em bico, atuando como palhaço. Em meio a surtos psicóticos e a violência brutal de Gotham, Arthur sonha em participar do programa de entrevistas do apresentador Murray Franklin, interpretado pelo veterano Robert De Niro. Entretanto, em uma noite de violência no metrô de Gotham, a vida do homem se transformará e tanto Arthur quanto a cidade jamais serão os mesmos.

Ambientada nos anos 80, Gotham City é retratada como uma cidade em colapso. A sujeira nas ruas é abundante, visto que o departamento de lixo está em greve. Ratos andam livres pelas ruas e a corrupção dos ricos é motivo de fúria para as classes mais baixas da cidade. E é através de Gotham que entendemos a figura de Arthur, sobre quem é o homem que virá a ser o Coringa. O longa é a todo momento, empático com o seu protagonista. Phillips explora, pouco a pouco, os motivos que levariam alguém a loucura. Antes do Coringa havia Gotham, sombria, violenta, corrupta. E é por conta de Gotham que o problemático, mas inofensivo Arthur, se torna o homicida dos quadrinhos e filmes. O palhaço nada mais é do que o reflexo de uma cidade abandonada pelo estado e não é à toa que, ao decorrer do filme, Coringa se torna símbolo de protestos da população marginalizada contra os privilegiados.

E se a transformação do vilão em símbolo de um movimento anti sistema faz sentido dentro da narrativa, isso se deve a performance espetacular de Joaquin Phoenix. Ator já consagrado, Phoenix demonstra o porquê é considerado um dos maiores, senão o maior, ator de sua geração, em uma atuação em que entrega tudo de si.  Sua voz, seus olhares e especialmente seu corpo indicam a figura frágil e inconstante que é Arthur. E se Phoenix não aparece em todas as cenas do filme, não deve passar cinco minutos sem que o ator não esteja na tela. Coringa é um estudo de personagem e o filme só funciona porque Joaquin vive com maestria a figura caótica do vilão.

O design de som e a trilha sonora acompanha a ida a loucura de Arthur, e a medida que o homem se afunda em seus transtornos, o áudio se torna mais alto e sujo, servindo como medida premonitória ao caos e violência que está por vir.

Em determinado momento do longa, em uma entrevista, o Coringa afirma que não tem qualquer pretensão política e que não deseja ser um mártir, apenas quer que os poderosos entendam que não podem pisar nos pequeninos e sair ilesos. Phillips promove um filme propositalmente ambíguo, que flerta com os dois lados do espectro político sem nunca se firmar em um ou outro. O filme se preocupa em estabelecer as razões por quais um homem pode sucumbir a loucura do que de fato servir como um ideal revolucionário, entretanto, é decepcionante perceber que um filme tão rico no sentido narrativo, abre mão de qualquer profundidade do campo político para apelar para uma audiência maior.

Se tecnicamente o longa é eficiente e oferece um retrato empático sobre um marginal da sociedade, o filme exibe diversas questões problemáticas, que vem sendo discutidas e apontadas por diversas pessoas. A facilidade com que o produto cultural foi abraçado pela comunidade incels, homens que se dizem celibatos involuntários, é preocupante. Em um mundo politicamente polarizado, Coringa parece não se importar em se posicionar de maneira clara. O filme aborda ideais anti establishment e é esse o motor para a revolta de Arthur.

Entretanto, o filme jamais se preocupa em aprofundar seu discurso anti sistema e aposta por uma revolta vazia, que não aponta culpados. O sentimento anti establishment foi motor para inúmeros movimentos sociais que foram cooptados por grupos políticos, e diversos desses movimentos adotaram posturas preconceituosas. Assim, é inocente, na melhor das hipóteses, a ideia de que o discurso presente em Coringa é imparcial. Por mais que seja um retrato das ânsias e medos da sociedade atual, a onda anti sistema que vivemos, o contexto em que o filme existe e a resposta que obteve do público mostra como a falta de uma delimitação moral e um apontamento mais claro sobre as questões do filme contribuem para uma leitura problemática.

Exigir que um filme tenha uma mensagem óbvia ou que seja alinhado com certa ideologia é infrutífero, porém, nenhuma arte existe no vácuo e lançar o filme, no contexto atual, adotando o tom escolhido é no mínimo, irresponsável.

Enquanto filme, Coringa é um excelente produto, capaz de fazer o público sentir empatia para com um homicida insano. Com uma atuação primordial de Joaquin Phoenix, o filme não compra nenhuma discurso político e aposta em uma abordagem vazia, mas poderosa. Os fãs de quadrinho verão a melhor origem da personagem, enquanto aqueles que não ligam ou estão cansados de filmes de super herói encontrarão um filme maduro sobre como monstros surgem em sociedades injustas. Independente de sua opinião do filme, um longa dessa qualidade, capaz de fomentar inúmeras discussões importantes, é notável.

Daniel Vila Nova

Fã de literatura, vai de Machado de Assis a Turma da Mônica em uma única sentença. Jogador de RPG, tem todos os consoles da Sony mas jura que não é Sonysta. Adora filmes ruins.