Conheça Hamilton, musical disponível agora na Disney+

Graças à Disney, Hamilton está mais acessível do que nunca (e você não deveria perder)

Como um bastardo, órfão, filho de uma meretriz se torna uma das figuras mais importantes da fundação dos Estados Unidos e estrela de um musical premiado da Broadway? Explicar o sucesso de Hamilton exige ir além de coreografias muito bem ensaiadas, um palco rotativo montado de forma inteligente ou das letras cheias de referências a clássicos do hip-hop e do rap.

Criado por Lin Manuel Miranda, a obra se inspira na vida de Alexander Hamilton, imigrante que nasceu no Caribe e se transformou em uma figura central na formulação da constituição dos Estados Unidos e das políticas econômicas que transformaram o país em uma potência. Saído de uma infância miserável, ele se destacou como advogado e soldado e pelas polêmicas que envolvem um grande escândalo sexual e uma rivalidade ferrenha com Thomas Jefferson, outra figura importante da história norte-americana.

Se a história do protagonista já tinha material mais do que suficiente para embasar a peça, o contexto pelos quais os Estados Unidos passavam durante a criação da obra também é essencial para sua formação. Hamilton é uma obra que representa muito bem a “era Obama”, marcada pela esperança de que a igualdade social e outros preceitos progressistas haviam se solidificado a ponto de ser a base de um futuro mais justo.

Uma nova história americana

Enquanto o tema do musical trata essencialmente de homens brancos — alguns membros de uma aristocracia em ascensão —, Lin Manuel Miranda decidiu que todos eles seriam retratados por alguém pertencente a uma minoria. Com isso, negros e latinos tomam o palco para recontar uma nova história americana que usa o passado para retratar a realidade do imigrante moderno e das aspirações que fazem os EUA ser uma grande nação.

Longe de ser panfletário, Hamilton traz uma visão essencialmente positiva e, de certa forma, inocente do país — especialmente vista sob a ótica da administração Trump. A terra da liberdade, em que imigrantes sem nada podem perseverar e encontrar seu lugar encontra ecos na história de Hamilton, mas também no clima de otimismo da administração Obama — o “Yes We Can” parece ser a temática que permeia o direcionamento geral da obra.

O musical também encontra ecos em outros momentos históricos mais recentes, colocando o rap e o hip-hop como a “língua da revolução”, enquanto formatos antigos — como a imitação/homenagem aos Beach Boys incorporada pelo Rei George — não conseguiam mais representar a rebeldia e os anseios de uma nova nação que buscava seu espaço e independência.

Todo esse contexto — junto, claro, ao fato de o musical ser estruturalmente sólido, ter músicas muito boas e um elenco de altíssima qualidade — ajudaram Hamilton a ser “mais do que um musical”. A produção encontrou sucesso mesmo em lugares muito longes da tradição da Broadway — como o Brasil — e se tornou um fenômeno cultural grande o bastante para termos referências a seu poster até mesmo dentro de games como Gears of War 5.

Pessoalmente, a história do musical ecoa por colocar o poder das palavras como ato central para a ascensão — e queda — do protagonista. “Escrevi meu caminho para fora do inferno, escrevi meu caminho para a revolução, fui mais alto que o sino rachado, escrevi cartas de amor para Eliza até que ela se apaixonou, escrevi sobre a Constituição e a defendi bem” são trechos de “Hurricane” que não somente descrevem bem a trajetória de Hamilton, mas ecoam profundamente no coração de quem, ainda que tolamente, ainda acredita no poder das palavras para mudar o mundo.

No entanto, é preciso ficar claro: Hamilton, o musical, não é uma lição de história, embora possa despertar o interesse para aprender de forma mais aprofundada. Se o primeiro ato tem um ritmo bom, o segundo “corre” pelos feitos do protagonista e deixa de fora muitas tramas que ajudam a entender porque ele foi “esquecido” pela história e expor certas hipocrisias — se no musical ele diz que “imigrante fazem o trabalho”, na história real ele chegou a propor leis que barravam a imigração nos Estados Unidos.

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A versão da Disney

Até pouco tempo atrás Hamilton estava restrito ao público norte-americano disposto a pagar caro por um ingresso — categoria na qual me incluo —, a um famoso bootleg e à trilha sonora oficial, agora todos podem vê-lo de forma bastante acessível. Isso é, se estiverem dispostos a assinar a Disney Plus, sistema de streaming que tem acesso exclusivos à versão filmada e estrelada pelo elenco original.

O resultado final é bom, mas traz vantagens e desvantagens claras em relação a ver a versão original no meio da plateia. Para começar, o filme se trata de uma gravação da versão teatral sem nenhuma concessão: ou seja, os atores não estão ali olhando para a câmera, mas sim atuando para uma plateia, o que pode gerar situações estranhas.

Junto a esse estranhamento, há algumas vantagens: closes permitem apreciar ainda mais a qualidade das atuações do elenco, revelando detalhes que, mesmo sentado perto do palco, um espectador normal não veria. Ao mesmo tempo, sinto que a filmagem desvaloriza um pouco o uso do palco rotativo — ao ver no teatro, conseguimos notar detalhes em segundo plano e construções de cena que enriquecem a narrativa.

Hamilton' movie to premiere on Disney Plus in July | Broadway News

Entre perdas e ganhos, o resultado é muito bom. A experiência não é a mesma de ver no teatro — algo que ninguém em sã consciência deveria se expor durante uma pandemia —, mas permite apreciar Hamilton de forma muito satisfatória. Se ouvindo a trilha sonora já dá para apreciar boa parte da obra, ela encontra seu complemento ideal na atuação, figurinos e construção de palco que a adaptação para o serviço da Disney nos traz.

NOTA: 9 de 10 Lafayettes

Texto por Felipe Gugelmin