Crítica – A Verdadeira História de Ned Kelly

Longa toma liberdades históricas e discute masculinidade, sexualidade e a violência de um dos criminosos mais icônicos da Austrália

Algumas histórias são tão marcantes que continuam a ser contadas e recontadas por anos e mais anos, até que não haja mais ninguém vivo que de fato se lembre o que ocorreu. Esse é o caso de Ned Kelly e sua gangue, figuras históricas e folclóricas da Austrália colonial, que já ganharam diversas versões hollywoodianas nas últimas décadas.

Ned, um fora-da-lei australiano que desafiou o poder britânico, já foi interpretado por figuras como Heath Ledger e até o astro do rock Mick Jagger. Na nova versão, dirigida por Justin Kurzel, Kelly é vivido por George Mackay. O longa ainda conta com Russell Crowe, Essie Davis, Thomasin McKenzie e Nicholas Hoult.

O filme não pretende pintar um retrato histórico de Kelly e deixa isso claro logo no começo. Um letreiro avisa: nada do que você verá na tela é real. Da infância miserável a juventude violenta, o longa estabelece um ritmo lento que parece mais preocupado em explorar a formação e os conflitos de Kelly do que mostrar os grandes feitos do anti-herói nacional. E é na relação familiar, o centro da gangue e da vida do próprio Ned, onde Kurzel explora as curiosas amarras que moldaram o fora-da-lei.

Após a prisão do pai, o ainda garoto Ned Kelly é obrigado a se tornar o homem da casa e passa a ter responsabilidades de um adulto. A mãe de Kelly, interpretada por Essie Davis, vê no filho a figura que pode salvar a pobre família e exige tal comportamento do garoto. A violência, seja para vingar o pai ou para conseguir alimento, é a ferramenta que Ned é ensinado a usar para sobreviver.

Orlando Schwerdt, ator mirim que interpreta Kelly criança, capta perfeitamente a inocência do garoto que se vê jogado em uma realidade cruel e violenta. É como se o mundo esperasse que Kelly fosse sanguinário. Sua mãe, seus irmãos, seu mentor e oficiais de justiça incentivam e provocam ele a todo momento, demandando uma postura agressiva.

O jovem até se recusa a derramar o sangue de outras pessoas, mas isso é sempre visto como fraqueza. Descendentes de irlandeses, a família de Ned é vítima da exploração britânica e guarda um enorme rancor da colônia. No mundo dos Kelly, a paz não é uma opção. Ned até tenta, mas é incapaz de abandonar sua família — o único laço que ele conhece. E cada vez mais, ele se vê cercado pelo estilo de vida violento que parece predestinado a seguir.

Se a juventude e os conflitos internos de Ned são constantementes explorados, a formação da gangue dos Kellys é tratada como uma nota de rodapé. Após um incidente familiar com a lei, Ned enfim assume a violência que tanto cultivaram nele e passa a se rebelar contra a colônia. A transformação, entretanto, é veloz e quase não há tempo para que ela aconteça. Kelly vai de um homem violento, mas moderado, para um brutal selvagem em poucos minutos.

A gangue, formada pelos irmãos e por outros personagens que sequer ganham nomes, se torna conhecida pela violência e pelas curiosas vestimentas. Buscando chocar os ingleses, eles se vestem com vestidos femininos e atacam com uma brutalidade imensa.

É notável a naturalidade com que a gangue Kelly se veste com vestidos femininos, uma quebra de tabu que busca assustar os inimigos. A sexualidade — que jamais é contemplada de maneira explícita — e a performance de gênero, são temas importantes no filme e questionam os papéis sociais de diferentes pessoas. Da relação dúbia com a mãe, onde linhas maternas e edipianas se confundem, a inexperiência sexual de Kelly, é claro que o afeto foi algo desconhecido pelo fora-da-lei durante o seu crescimento.

Curiosamente, sua relação mais saudável é a com o amigo Joe Byrne, interpretado por Sean Keenan. Abraços, beijos e carinhos tipicamente românticos são compartilhados pelos dois sem qualquer problema. E é Byrne o único que parece alertar — e posteriormente lamentar — o caminho violento “escolhido” pelo fora-da-lei.

Belo, o filme aposta em poucos momentos surreais que dão um ar quase místico aos ataques da gangue. Generoso com a figura do protagonista, o diretor parece mais preocupado em entender o que tornou Kelly um homem violento do que exaltar seus feitos.

Ao abordar questões de gênero, de sexualidade, de classe social e colocar em xeque a masculinidade do herói western, “A Verdadeira História de Ned Kelly” cria um interessante panorama onde todos parecem predestinados a fins trágicos e violentos. Sem brechas para finais felizes, o longa demonstra como papéis sociais definem toda uma vida e — consequentemente toda uma lenda.

Daniel Vila Nova

Fã de literatura, vai de Machado de Assis a Turma da Mônica em uma única sentença. Jogador de RPG, tem todos os consoles da Sony mas jura que não é Sonysta. Adora filmes ruins.