Review – Streets of Rogue

Um roguelike anárquico

Talvez uma das maiores influências presentes nos jogos indies atualmente tenham sido deixadas pelos incríveis The Binding of Isaac (2011), Hotline Miami (2012) e Nuclear Throne (2015). Apesar das diferentes ambientações e contextos que envolvem esses diferentes títulos, eles têm muito em comum. O famigerado subgênero roguelike aparece em dois deles, caracterizando a geração de level procedural a cada nível ou partida, mapa baseado em tile (telhas, para os programadores) e um dos recursos mais divertidos e possivelmente cruéis existentes nos games: a permadeath, o que implica que morrer em qualquer etapa do game basicamente faz com que o jogador perca tudo, sendo obrigado a reiniciar sua jornada. A ação e violência embebidas em temáticas de humor pitoresco ou irônico são outra característica presente nas histórias desses games.

Seja o contexto bizarro referente a uma narrativa bíblica que envolve uma criança que foge urgentemente de sua mãe, temendo sua morte; ou o massacre da máfia russa por parte de protagonistas que seguem ordens misteriosas utilizando máscaras estranhas, ou até mesmo um contexto pós apocalíptico em que mutantes devem lutar contra monstros. Em todos estes games citados, gráficos pixelados constroem uma ambientação quase que absurda, personagens icônicos vão aos lugares mais inusitados, deixando um rastro de sangue em 2D, enquanto a trilha sonora cumpre seu papel, marcando os momentos mais estratégicos e de constante tensão. A dificuldade encontrada pelo jogador para traçar esse caminho talvez seja o que o mantém tanto tempo aficionado, na tentativa de vencer mais um desafio.

É seguindo esse raciocínio que podemos acrescentar Streets of Rogue (2017) na sequência como mais um indie que utilizou muito bem da herança deixada por esses antecessores. Segundo a própria descrição dos desenvolvedores, é como se Nuclear Throne encontrasse Deus Ex, misturado com a anarquia de GTA. Tendo uma clara inspiração nos roguelikes de visão superior que tanto cativaram os jogadores, o novo game baseia-se muito na escolha e liberdade do jogador, guiando-o pela experiência. Com relação ao formato livre adicionado pelo jogo, é possível jogar, por exemplo, sem matar ninguém, como já proposto em outros games como no já citado Deus Ex, Dishonored e Undertale. Além disso, o hacking foi implementado de uma maneira muito eficiente e divertida, possibilitando que o jogador se aventure em outras mecânicas que não as opções mais sanguinárias.

A história de SoR é sobre um governo totalitário, que assumiu o controle das cidades e que determina em grande parte aquilo que acontece com as pessoas. Porém, há uma resistência, na qual o jogador é inserido logo no início. A resistência funciona como um grupo rebelde insano em que há um líder que introduz o jogador às mecânicas mais básicas para se aventurar pela cidade, agora como membro efetivo da resistência. Dentre essas mecânicas apresentadas, há como hackear computadores, utilizando-se de uma ferramenta específica e, obviamente, existem as mais diversas maneiras de eliminar seus inimigos, seja com os próprios punhos ou mesmo utilizando alguma das armas disponíveis.

O humor presente na história funciona bem, os diálogos são curtos mas engraçados e há uma dose de ironia em quase tudo. Pressupondo a desobediência civil, o game sugere desde cedo que o jogador pode resolver os conflitos como desejar, porém, o non lethal gameplay, isto é, a resolução dos niveís sem eliminar nenhuma pessoa é extremamente desafiador, ainda mais quando alguns determinados personagens são escolhidos.

Ainda que o indie esteja no acesso antecipado na Steam, cerca de vinte personagens são elegíveis para vivenciar sua aventura pelas sórdidas indústrias e favelas presentes em SoR, ainda que alguns necessitem ser desbloqueados. É possível, por exemplo, escolher um personagem como o soldado que é quase totalmente voltado para atirar, montar armadilhas, bombas e explodir portas ou, escolher o cientista e neutralizar seus oponentes com substâncias químicas, há ainda personagens mais voltados para o stealthcomo o hacker e o barman, cujas mecânicas consistem em completar as missões de maneira mais oculta ou baseada no convencimento. A customização do personagem está presente, embora poucas características possam ser alteradas, como cor da pele, cabelo, tipo de cabelo e barba. Por hora existem poucas opções de personagens femininos, o que pode ser um pouco frustrante, em meio há tantas possibilidades.

Nos leveis que fazem parte das cidades, gerados aleatoriamente, o jogador se depara com a IA (humanos virtuais) que reflete pessoas comuns existentes naquela realidade: há trabalhadores, policiais, médicos, barmans e comerciantes, traficantes de drogas, gangsters, donos de escravos e escravos, mendigos, dentre outras figuras que eventualmente compõem aquele contexto. Para realizar as missões propostas e concluir o nível, tudo é possível, desde convencer seguranças a te ajudarem, comprar a ajuda de gangsters, mendigos e escravos para serem seus aliados, envenenar os ambientes com gases tóxicos para evacuá-los, dentre outras alternativas mais criativas.

Provavelmente essa seja a melhor parte de Streets of Rogue, uma vez que há uma infinidade de formas de completar cada fase e cabe ao jogador decidir qual a mais vantajosa para economizar itens ou simplesmente a que será mais divertida. Além disso, outro fator a ser citado é a grande variabilidade de itens com as mais diferentes funções existentes e que serão de grande auxílio para avançar nas cidades. Alguns deles chamam bastante a atenção pelo fator inusitado: há um trevo de quatro folhas que obviamente existe para dar sorte ao jogador, um telefone que pode ser utilizado pelo gângster para chamar seus aliados e um rádio que toca música quando colocado em qualquer lugar, fazendo que as pessoas ao redor dancem. Além disso, alguns itens podem ser clonados em máquinas de clonagem, por um preço.

Certamente não seria um jogo incrível sem um dos fatores mais divertidos para complementar a obra: o multiplayer. Seja local ou online, o roguelike conta com o sistema de multijogador para até quatro jogadores, o que encaixa perfeitamente com a ideia de jogabilidades mais livre proposta pelos desenvolvedores. Sem uma trilha sonora potente para agitar cada momento desafiador do gameplay, provavelmente a diversão não funcionaria tão bem como funciona em cada novo level design.

Seja dilacerando corpos, contratando aliados ou entrando sem ser notado, Streets of Rogue funciona tão bem como seus predecessores, instigando o jogador a jogar mais de 600 horas sem ficar entendiado. Os jogadores fãs dos essenciais jogos já citados e que apreciam o sabor da anarquia, com certeza devem adentrar a Resistência. As limitações existentes provavelmente se devem ao fato do game ainda estar na fase de testes, o que pressupõe que vários fatores poderão ser melhorados na versão final.

Nesse incansável universo, tornar-se um vampiro, deparar-se com fantasmas, libertar escravos e beber cerveja serão algumas das coisas mais insanamente normais que certamente acontecerão em duas dimensões e totalmente em português.

Streets of Rogue está disponível em acesso antecipado para PC (Steam). 

Letícia Motta

Huge nerd. Apaixonada por eSports, JRPG's e ficção científica. Passa as horas vagas nos videogames e PC.