Entrevista com Luciana Guerreiro da Rogue Snail sobre Hell Clock
Hell Clock é o mais recente título do estúdio brasileiro Rogue Snail, que transforma a tragédia histórica da Guerra de Canudos (1896–1897) em uma jornada infernal. No papel de Pajeú – ex-escravizado e guerreiro real –, você invade um purgatório infernal para resgatar a alma de Antônio Conselheiro, líder espiritual de Canudos.
Inspirado na agilidade de Path of Exile e na estrutura de Hades, o jogo comprime a experiência em partidas dominadas por um relógio implacável com combate personalizável através de relíquias e bênçãos. Além disso, Hell Clock é um marco de representatividade: dublado 100% por nordestinos (como Dody Só, intérprete de Pajeú no cinema), com trilha sonora baseada em cordel e repente. Cenários recriam o sertão baiano sob lentes dark fantasy. Mais detalhes sobre o jogo pode ser visto em nossa review de Hell Clock.
Empolgados com este lançamento, tivemos a oportunidade de conversar com Luciana Guerrero Marques, Líder de equipe de comunicações da Rogue Snail, através de algumas breves perguntas, soubemos de mais detalhes dos bastidores do desenvolvimento de Hell Clock, um título que carrega um grande peso, mas entrega com muita responsabilidade, confira a entrevista abaixo:
Geeks United: Por que Canudos foi escolhido como tema para o jogo? Vocês usaram o livro Os Sertões como inspiração principal?
Luciana Guerrero: Canudos foi escolhido porque sentíamos que representa um capítulo crucial, violento e ainda mal resolvido da história brasileira. A Guerra de Canudos não foi apenas um conflito, mas um genocídio do Estado contra uma comunidade marginalizada, com motivações políticas, religiosas, sociais e raciais que ainda ecoam no Brasil de hoje.
O livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi uma referência inevitável, mas não foi a única fonte par a narrativa do jogo. A equipe também se apoiou em pesquisas acadêmicas e análises críticas, além do trabalho em conjunto com o historiador Swami Abdalla-Santos, para construir uma visão mais atual, sensível e politicamente consciente do que foi Canudos. Os Sertões é citado como um registro histórico importante, mas o jogo opta por questionar e recontar essa história sob outra ótica, a dos assentados de Canudos.
GU: Além de Antônio Conselheiro, Pajeú e João Abade, veremos outras figuras históricas junto a eles?
LG: Sim. Embora a narrativa de Hell Clock esteja centrada na trajetória de Pajeú, e conte com Antônio Conselheiro e João Abade, há espaço para outras figuras históricas e simbólicas, que aparecem tanto de forma direta quanto por meio de interpretações fantásticas.
O jogo faz questão de representar Canudos não apenas como um evento, mas como um ecossistema social e espiritual, onde líderes, soldados, mulheres, crianças e o próprio sertão ganham protagonismo. Isso inclui personagens inspirados em figuras históricas e mitos do sertão, que ajudam a construir o peso dramático da narrativa, especialmente nos flashbacks e nas camadas simbólicas do inferno, onde as almas de Canudos estão presas.
GU: O estúdio teve colaboração de alguma entidade ou historiador pra elaborar a trama?
LG: Sim, a construção da trama contou com a coautoria do historiador Swami Abdalla-Santos. Sua participação foi essencial para garantir que a narrativa tratasse o tema com responsabilidade.
Além disso, nosso tech artist Igor fez pesquisa de campo em Canudos, visitando o Museu da Guerra de Canudos e fotografando o local, trazendo referências visuais diretas do sertão para a construção dos cenários. A equipe também utilizou acervos acadêmicos e museológicos, buscando representar não só os fatos históricos, mas também a cultura material, a espiritualidade e o ambiente do povo sertanejo.
GU: Sabendo que esse gênero de jogo costuma ser bastante focado no endgame e testar diferentes builds a cada run, vocês vão seguir esse caminho ou o foco é seguir o rumo da própria história para concluí-la?
LG: Hell Clock foi pensado para equilibrar os dois mundos: a profundidade de gameplay que os fãs de roguelike/ARPG esperam, com variedade de builds, progressão entre runs e crescimento de poder; e uma narrativa com início, meio e fim, ancorada em uma jornada pessoal e histórica.
A cada run, o jogador desbloqueia fragmentos de memória de Pajeú, revelando mais da história de Canudos, do Arraial e de seus personagens. Ou seja, o jogo não se perde em uma repetição infinita: ele usa a estrutura roguelike como ferramenta narrativa, conectando mecânica e mensagem.
Ao final do jogo, no endgame criamos a Ascensão, onde a história já foi concluida e elementos de roguelike ficam mais fortes para os jogadores que gostam desse tipo de desafio. Então quem gosta de experimentar builds, habilidades e estratégias vai encontrar variedade. Mas quem busca uma experiência narrativa significativa e com conclusão também será recompensado.
GU: Como foi implementar os elementos de fantasia dentro da história real? Exigiu muita criatividade?
LG: Sim, exigiu, e foi um dos maiores desafios criativos do projeto. Desde o início, a equipe sabia que não queria fazer uma reconstituição literal da Guerra de Canudos, mas sim uma representação simbólica e emocional, onde a fantasia serve como linguagem para expressar dor, memória e resistência.
Elementos como o “relógio do inferno”, as criaturas do purgatório, os rituais e ambientes surreais foram criados como metáforas dos horrores vividos pelas vítimas de Canudos e também para representar a repetição cíclica da violência histórica no Brasil.
Essa abordagem exigiu um equilíbrio delicado entre respeito histórico e liberdade criativa. Por isso, a presença do historiador e a pesquisa de campo foram tão importantes.

GU: Como foi a mudança de ares de um jogo como Relic Hunters para Hell Clock? Considerando que esse novo é mais obscuro, carrega uma história e ambientação mais pesadas
LG: Foi uma mudança significativa e ao mesmo tempo, natural. A Rogue Snail é conhecida por Relic Hunters, que tem um visual colorido, personagens carismáticos e um universo cheio de humor e ação. Com Hell Clock, o estúdio explorou um lado mais maduro, político e simbólico, mas sem perder sua identidade visual forte e sua habilidade de construir sistemas de jogo envolventes.
Essa transição permitiu à equipe expandir sua expressão artística, abordar temas mais complexos, e mostrar que jogos brasileiros também podem falar de história, dor e ancestralidade, sem abrir mão de mecânicas sólidas.
Ao mesmo tempo, Hell Clock mantém a paixão do estúdio por jogos que misturam gameplay viciante com identidade cultural única, e isso é um fio que liga os dois títulos.
GU: Acha que o futuro reserva games inspirados na Guerra do Contestado ou até mesmo a Guerra de Farrapos como base?
LG: Com certeza e esperamos que sim. Hell Clock abre caminho para uma nova fase na cena de jogos brasileiros: projetos que mergulham em nossa própria história e cultura, com coragem e criatividade.
Guerras como a do Contestado e a dos Farrapos têm um enorme potencial narrativo e simbólico. São conflitos com raízes sociais profundas, personagens icônicos e consequências que ainda ressoam. Se tratados com o mesmo cuidado e liberdade criativa esses eventos podem render jogos incríveis.
Acreditamos que o futuro dos games brasileiros passa justamente por isso: contar as histórias que só nós podemos contar.
Hell Clock foi finalista no BIG Festival 2025 e tem atraído atenção global. Mais que um ARPG, é um manifesto cultural que usa a linguagem dos games para recontar uma luta brasileira contra a opressão – disponível na Steam a partir do dia 22 de julho.