Crítica – Era Uma Vez Em… Hollywood

Com segundo ato arrastado e final tarantinesco, Era Uma Vez Em… Hollywood é uma carta de amor aos anos 60.

 

A década de 60 foi um período singular para os Estados Unidos. Solidificando a estrutura de poder da nova potência mundial, a época moldou a cultura popular como conhecemos hoje sendo vista como base para tudo o que se produziu desde então. Na contracultura, a geração pós-guerra finalmente atingia a maioridade legal e com isso, revolucionou o status-quo. Dos protestos contra a guerra do Vietnã aos Panteras Negras, a época era vista como um divisor de águas, uma oportunidade de ser melhor do que aqueles que moldaram o passado.

O sonho americano, entretanto, não durou. E nada representa isso melhor do que o assassinato de Sharon Tate, cometido pela família Manson. Desvirtuando a ideologia hippie, Charles Manson e seus seguidores invadiram a mansão da queridinha dos Estados Unidos e a assassinaram de maneira brutal, colocando um fim a década do sonho californiano.

Em seu nono filme, Quentin Tarantino acompanha a vida do ator em decadência Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu dublê e melhor amigo, Cliff Booth (Brad Pitt) na tentativa de retomar a carreira do ator ao estrelato. Em paralelo, acompanhamos a vida da vizinha de Dalton, Sharon Tate(Margot Robbie) e sua meteórica ascensão a fama.

Assistir Era Uma Vez Em… Hollywood é como assistir a contagem de uma bomba relógio. Ao se passar em 1969 e colocar Sharon Tate como elemento tão importante da trama, assim como a família Manson, o desfecho do filme se torna óbvio para quem conhece a história. Contamos os segundos para que Tex Watson, aqui interpretado por Austin Butler profira “Eu sou o Diabo e vim fazer o trabalho do Demônio” e começar a matança que encerrou a década de 60. Entretanto, passamos a maior parte do tempo com Rick e Cliff. Não há uma história propriamente dita, Tarantino está muito mais interessado em explorar os aspectos visuais e sonoros da época, assim como suas personagens. A qualidade dos diálogos se mantém fantástica, entretanto, o cineasta parece perder a mão ao estender demasiadamente as cenas de conversas. Com o tempo, por mais interessante que a troca entre as personagens seja, a falta de ritmo atrapalha o filme.

O material dado a DiCaprio e Pitt é tão fantástico quanto o trabalho realizado pelos dois veteranos. DiCaprio entrega um ator em decadência que se balança entre o cômico e o trágico, nunca se estabelecendo em um desses dois espectros. Isso funciona de maneira perfeita, fazendo com que o público seja capaz de rir da desgraça da personagem, sem deixar de se tocar pela fragilidade do mesmo. Já Pitt constrói um galã misterioso, mesmo que simples. Há certa moral que guia a personagem, assim como seu maneirismo e ideias, que exemplificam o homem americano ideal da década de 60.

E se Booth e Cliff são homens americanos ideias, a Sharon Tate de Margot Robbie é a personificação do conto de fadas que foi os anos 60 para Tarantino. Tratada como um ícone desde o começo do filme, é só no meio do longa que Robbie consegue dizer sua primeira palavra. Apesar disso, a presença e a beleza da atriz são mais do que capaz de transformá-la na queridinha da América e fica fácil de entender porque Tarantino a elegeu como musa de seu filme. A construção de Tate é curiosa pois, ao mesmo tempo que somos apresentados a essa figura quase divina, o longa mostra como a Sharon Tate de carne e osso também se maravilha e admira a Sharon criada por Hollywood. Por mais que o filme seja surpreendentemente respeitável com a memória de Tate, a impressão que fica é que Tarantino não consegue fugir da clássica redução da queridinha da América a esse símbolo da década, concedendo pouco espaço para que Robbie trabalhe a humanidade da atriz.

O diretor conhecido por referenciar inúmeros filmes, dessa vez, utiliza como grande referência a própria década. Programas de rádio, TV, filmes, música, vestuário, carros, localizações. Tudo é propositalmente fiel a última gota para emular esse período. Tarantino trata os anos 60 com um apreço religioso, convertendo essa época em seu reino fantástico de autoreferência. Por isso, é particularmente doloroso ver a representação de Bruce Lee, ícone das artes marciais, interpretado por Mike Moh. Caricato, o ator é mostrado como um alívio cômico, que serve para exaltar a personagem de Brad Pitt. É compreensível que os fãs do artista se sintam ofendidos por um retrato tão grosseiro, especialmente quando, no restante do filme, Tarantino se presta a exaltar todos os outros elementos da época, contanto que sejam americanos.

Por mais que o segundo ato seja arrastado, ainda há momentos espetaculares e isso se deve em parte aos diálogos incríveis e a atuação dos principais atores, é importante ressaltar a força do elenco secundário, que rouba a cena diversas vezes. Margaret Qualley é hipnótica como a hippie da família Manson, Pussycat. Já a pequena Julia Butters é um perfeito contraponto a persona tragicómica de Dalton, brilhando como a atriz mirim Trudi. Ainda é possível destacar Mikey Madison, que em seus poucos minutos de tela conduz a hippie Sadie com uma energia impressionante.

Temos vislumbres da Família Manson por todo o começo do filme, mas só a conhecemos de verdade no segundo ato. Charles Manson (Damon Herriman) mal aparece e cabe as garotas de Charlie serem a representação da maldade na terra. A dominação de Manson para com os membros da família nunca é mostrada e parece que o filme supõe que o espectador conheça os inúmeros abusos e violências físicas e mentais perpetuadas pelo líder do culto, que resultaram em uma lavagem cerebral completa na mente de jovens perdidos. A falta de tempo para explorar essa faceta da família prejudica o argumento de que são eles os responsáveis pelo fim daquela época de sonhos. Tarantino sexualiza as garotas de Manson em uma tentativa de emular o comportamento das próprias garotas na vida real. Era comum que elas seduzissem homens em troca de favores e o próprio Charles Manson admitia que usava a libertinagem de sua família como isca para novos integrantes. A falta de contextualização, aliada a ao ponto de vista exclusivamente masculino do filme tornam a escolha de Tarantino problemática. Havia maneiras diferentes de abordar a sexualidade como ferramenta das garotas de Manson, mas o diretor opta pelo caminho mais fácil.

Ao nomear seu filme “Era Uma Vez”, Tarantino deixa claro que ele considera aquela época uma época encantada, e seu filme a todo momento exalta a figura que moldou aquele tempo: O Homem Americano Branco. Problemático em alguns níveis, o nono filme do diretor é o saudosismo exagerado de uma época que não foi tão perfeita. Entretanto, ao se tratar de ficção, o filme é muito feliz ao entregar personagens interessantes e atuações excepcionais, assim como um retrato fidedigno da época.

Seu final é notoriamente Tarantinesco, com uma violência tão exagerada que arranca risos intermináveis da plateia. A violência caricata se estende um pouco mais do que o necessário, talvez o grande problema do filme como um todo. Tarantino parece incapaz de abrir mão da sua obra, mesmo que isso prejudique o ritmo do longa. Com um encerramento surpreendentemente tocante, Tarantino realiza o seu conto de fadas, ignorando a realidade para produzir o seu próprio “E foram felizes para sempre”.

Daniel Vila Nova

Fã de literatura, vai de Machado de Assis a Turma da Mônica em uma única sentença. Jogador de RPG, tem todos os consoles da Sony mas jura que não é Sonysta. Adora filmes ruins.